Já te digo ao que venho, Manuel Luís, mas deixa-me começar por uma coisa aparentemente insignificante. Há umas semanas, fui convidado para uma entrevista sobre o meu novo livro. Lá fui respondendo às questões da Ana Daniela (culta, gentil) e foram momentos de conversa interessante e descontraída, que se prolongaram depois de desligados os microfones. Em nenhum momento nos concentrámos no facto de eu ser um rosto da SIC a dar uma entrevista à RTP. A entrevista, convocada pela Ana Daniela, terá tido, naturalmente, a carta branca da sua direcção, a quem aqui agradeço também a largueza de vistas. Que tem este acontecimento de invulgar? Precisamente o facto de ser invulgar. Vivemos, como sabes, num país onde se alimentam guerrilhas pequeninas e estúpidas, sobretudo quando comparadas com valores que deveriam estar acima de siglas, empresas e egos. O que me leva ao que escreveste sobre mim no teu blogue, a propósito da minha intervenção nos Globos de Ouro. Quero agradecer-te, louvar-te as várias coragens que ali se cruzam, e faço-o não por mim mas por todas as pessoas que me deu vontade de ali representar. Todas as incontáveis vítimas da loucura incessante, que tu e eu, e espero que muitos mais, vemos acumularem-se, a ritmo diário, numa chacina que envergonha a nossa dita civilização. O que é ainda (infelizmente) curioso foi perceber a surpresa que para muita gente constituiu o teu elogio público a alguém da “concorrência” (a palavra mais feia da comunicação social). Tive de explicar a algumas pessoas que, para mim, não há qualquer surpresa no gesto de alguém que nunca esquece que os empregos e as carreiras vão e vêm, e sobem e descem, mas se perdermos a condição de seres, pessoas e cidadãos, teremos pouco ou nada de que nos orgulharmos. Eu sei que partilhas do meu desespero: as pessoas não ouvem, ou só ouvem o que querem, andam distraídas. Repara que eu disse, de forma clara “Aos que perguntam o que tem este discurso a ver com uma gala de artistas, eu digo que tem tudo, os artistas têm uma responsabilidade, não podem ser só sorrisos numa passadeira vermelha, etc., etc.”. No entanto, como sabes, alguns dos comentários depreciativos eram precisamente de indignados que perguntavam que raio foi aquele discurso naquele lugar… As pessoas não ouvem as coisas mais claras, Manuel Luís, como podemos esperar que escutem as mais difíceis? Eu fui claro como água, dei logo a resposta ao que sabia ser a pergunta que muitos poderiam fazer. Mas as pessoas não ouvem. Esta estranha e infeliz certeza é por vezes tão desesperante que chega a dar vontade de desistir. Querem de nós apenas plástico? Tudo bem, fazemos o trabalhinho e recebemos ao fim do mês. Mas não consigo. A minha carreira, como a tua, vai longa, e antes que acabe quero que tenha significado alguma coisa. Tenho uma responsabilidade, e sim, tem tudo a ver com a minha costela de escritor e até mesmo de jornalista. Quando eu a perder, quando eu não operar uma mediação entre a realidade que existe e a que comunico, serei um autómato, uma fria figura de computador, e o asco e nojo de que a sociedade actual é capaz (no seu pior) tomará conta das nossas vidas. Por isso, Manuel Luís, ainda que pareça que ninguém escuta, continuarei a uivar à lua. Sei que há por aí, felizmente, alguns outros que recusam desistir, como tu, e que tentarão, sempre e sempre, na frágil medida das suas capacidades, gritar de vez em quando contra o mal. Não sei se conseguiremos, mas acabaremos a vida a tentar. Obrigado por ouvires, por uivares comigo à lua. Estão ali a fazer-me sinal para acabar, que a carta vai longa… Aqui fica, público e claro como água, o grande abraço que te envio. Rodrigo
Rodrigo Guedes de Carvalho: Carta a Manuel Luís Goucha
Sei que partilhas do meu desespero: as pessoas não ouvem, ou só ouvem o que querem, andam distraídas.