N asceu em Lisboa, a 26 de Fevereiro de 1986, e foi adoptada aos 10 anos. Mas lembra-se da sua primeira vida. “Lembro-me de viver com a minha mãe numa pensão… Recordo-me de ser noite e de ir buscar a minha mãe de carro… Passávamos pela Feira Popular, ela saía de trás de uns arbustos… Comia uma vez por dia… Eu passava o dia inteiro sozinha, a brincar na rua, com outros meninos… Cortei os pés a brincar na rua… Lembro-me de queimar um tapete a brincar com fósforos… Lembro-me de, juntamente com os outros miúdos, roubar guloseimas e comida na mercearia…”
“A tua mãe morreu”
Fragmentos que a memória de “Joana” teimou em não esquecer. “Lembro-me de ver a minha mãe com um grande barrigão… De ir ao hospital vê-la e ela estar numa maca… Recordo-me dela em casa com um bebé… Ensinaram-me a fazer biberões e a dar de comer ao bebé…” Houve um dia em que o bebé desapareceu e a mãe não regressou… “Lembro-me de estar num funeral (não sei se era da minha mãe) e de ver muita gente a chorar… Eu fiquei com o meu pai e fui depois para uma ama… Perguntava muitas vezes pela minha mãe. Até que houve um dia, lembro-me de estar a desenhar numa secretária e perguntar ao meu pai e ele dizer A tua mãe morreu…”
Frágeis fragmentos que persistem na memória de “Joana” sobre a sua primeira vida. Depois disso, sabe que foi adoptada (aos 10 anos) e reconhece que foi uma filha difícil. “Vinha cheia de vícios da rua… Era muito vivida por um lado, mas não sabia ler, escrever, ver as horas… e falava muito mal… Tive de me moldar e a minha relação com a minha mãe adoptiva não foi das melhores… Eu não era uma criança fácil… E estava sempre a testar os limites da minha mãe…” Mal teve um trabalho e forma de subsistência, “Joana” saiu de casa.
Independente, teve novos percalços. Um namorado toxicodependente, uma gravidez inesperada, até que encontrou alguém que hoje a estima e trata bem. A vida andou. Sem saber explicar porquê, conta que sempre que via notícias sobre o Estripador de Lisboa ficava incomodada. Um dia, conta, ao ver uma reportagem na TV “os bocados da minha memória passaram a fazer sentido… E se eu fosse filha da tal Maria Fernanda? Fui à procura de certidões de nascimento, do óbito da minha mãe [Fernanda] e descobri que eu sou mesmo a filha de uma das vítimas do Estripador de Lisboa…”
Filha da Maria Fernanda
“A minha mãe chamava-se Maria Fernanda Matos. Era uma mulher de cabelo castanho-escuro, baixinha e magra… Lembro-me de ir com ela para uma casa onde havia muitas crianças e de eu ter um acidente num poço, em que quase morri afogada… Estava a brincar em cima de uma tábua que rangia e caí em algo fundo e cheio de água…” Tinha 6 anos quando a sua mãe faleceu. Hoje, lidas as certidões a que teve acesso, “Joana” já sabe quem é.
Respostas
“Fui à procura das minhas origens… Cheguei ao meu pai…” e à família materna. “Tive a certeza que eram a minha família porque reconheci o local onde tinha estado em criança com a minha mãe e o poço onde quase me afogara… Fui extremamente bem acolhida.” Agora, por sua iniciativa, veio falar connosco. “Não quero ser famosa, apenas procuro respostas. Quero saber mais sobre a minha mãe e sobre quem lhe fez mal.”
O Estripador de Lisboa
Nunca as violou. Teve tempo para tudo e poucos vestígios deixou. Atacou as vítimas de madrugada, esventrou-as e extraiu-lhes órgãos e vísceras. Manteve–lhes os rostos intactos e nunca lhes limpou o sangue. O dr. José Sombreireiro, o médico-legista (entretanto falecido) que autopsiou as três vítimas, explicou-me na época que o perfil do Estripador de Lisboa deveria ser o de um homem solitário, sem relações, publicas ou conhecidas, com as vítimas. Não há evidência de ter sido só uma pessoa… mas poucas provas foram encontradas nos locais, além do sangue delas. O mistério e algumas semelhanças de comportamento entre o estripador de Londres (1888) e o da pessoa que assassinou três mulheres portuguesas na área da capital portuguesa (1992/1993) fizeram com que chamassem Estripador de Lisboa a este último.
Sem saída
A PJ (Polícia Judiciária) investigou pistas diversas, o passado e as pessoas ligadas às três vítimas e até suspeitos “insuspeitos de quem ninguém imaginaria o acto”, no dizer do dr. José Sombreireiro, o médico-legista que as autopsiou. Muitos foram seguidos, mas nenhuma prova foi apurada. “Os assassinos em série matam até serem presos ou morrerem. Repetem os crimes de forma quase litúrgica. Este, ou emigrou, ou era estrangeiro e regressou ao seu país, ou morreu. Eram outros tempos. Agora há internet, computadores pessoais, exames de ADN e mais um sem-número de instrumentos técnico-científicos”, explicou-nos um ex-inspector da PJ. Mas mesmo que o assassino fosse descoberto, não poderia ser julgado, nem condenado. O nosso Código Penal diz que qualquer um daqueles crimes prescreve em 15 anos.