E pronto, lá vem mais uma dissertação sobre privacidade, intimidade, o que é ser figura pública, que direitos e “deveres”, onde se traça a linha de fronteira. Uma familiar chama-me a atenção. Uma revista traz fotos minhas e do meu filho. E qual era a extraordinária circunstância que levou a revista a fazer a “notícia”? Eu estava no meu carro, à porta de um ginásio, à espera que o meu filho saísse. As fotos documentam a espantosa “história”: eu bocejei enquanto esperava, logo ando “cansado”, apesar de, como a espera indica, ser um “pai dedicado”. O meu filho, felizmente alheado do mundo das fotos à socapa, mostrou-se espantado, e a ingenuidade costuma levar aos raciocínios mais genuínos: mas o que é que interessa se me foste buscar ao ginásio? Pois, filho, excelente pergunta, já a fiz inúmeras vezes a propósito de outras situações igualmente excitantes. A grande questão continua a ser extremamente simples: tenho ou não o direito a decidir quando e onde sou fotografado por uma revista que difundirá para as massas a minha imagem? Repare que não se trata de legalidade, mas de moralidade, bom senso e respeito. Claro que a revista responderá que estou num espaço público, blá, blá, blá, sabendo perfeitamente que não é essa a minha questão. A questão é que as revistas sabem muito bem com quem contam para alimentarem as suas edições semanais, conhecem bem quem joga o jogo, quem pede entrevistas, quem anuncia onde vai estar para ser fotografado “de surpresa”, quem gosta e faz questão de aparecer, quem abre as portas de casa, faz espantosas confidências, lava roupa suja em público, seja a que pretexto for, por estar convencido de que a sua vida e notoriedade se medem desta forma. E são tantos e tantas, meu Deus, que não entendo porque não chegam e sobram às revistas essas personagens que fazem tudo o que seja preciso em nome de mais uma foto, mais uma referência, mais uma prova de que andam por aí. Mas depois há os outros, dos quais faço parte. Não sou melhor ou pior, simplesmente não tenho essa lógica de vida ou de gestão de “imagem”. Sou figura “pública”? Sim, irremediavelmente, desde que a minha profissão (e sublinho: profissão) implica que, quase diariamente, há mais de uma vintena de anos, eu seja o rosto que anuncia os principais acontecimentos de cada dia. Sim, mas fora isso? Ando por aí a dar entrevistas sobre amores e desamores? Anuncio “novos projectos”? Mando a mensagem que vou fazer uma operação plástica? Estou presente nos “eventos” do croquete e da caipirinha, onde se vai para se ser fotografado, mais uma vez, e mais uma vez, enquanto parece que estamos solidários com a causa do evento? Aceito convites de marcas para sacar mais um telemóvel, um fim-de-semana de borla num hotel, um relógio, um perfume, um tablet? Alguém me vê sôfrego de protagonismo, a fazer-me à fotografia, qual emplastro? Alguém me ouve filosofar sobre a vida, para “provar” que também “penso e reflicto”? Dou entrevistas ou depoimentos a dizer que “descobri” que, de alguma forma, que “o nascimento dos filhos vem alterar a nossa vida, as nossas prioridades…” (a sério?…). Respondo a inquéritos sobre “as músicas da minha vida”, as “dietas mais loucas em que já me meti”? Sendo óbvia a resposta a tudo isto, ela implica, para quem tem dois dedos de testa, que me interessa pouco ou nada a minha dimensão “pública” fora das paredes do estúdio da SIC. Sou, e sempre quis ser, mais um entre a multidão. Poder viver a minha vida ao meu ritmo, com os meus hábitos, vestir o que me apetece. Parece-me um direito mínimo e digno, tendo em conta que não chateio ninguém, não me imponho a ninguém, não alimento polémicas com ninguém, não agrido ninguém. Faço-o porque busco, mais do que nunca, uma sensação de paz, a paz possível de quem já tem menos tempo para a frente do que certamente já deixou para trás. E, sim, estar à espera do meu filho que foi ao ginásio, no recato do meu carro, sim, isso faz parte, ou deveria fazer, do meu direito à paz. E faz, sobretudo, parte do direito inalienável do meu filho, ou de qualquer outro familiar meu, a não ser arrastado para um mundo onde não quer estar. Eu e a minha família queremos estar fora deste jogo. Pode ser?
Fora de Jogo
Sou, e sempre quis ser, mais um entre a multidão. Parece--me um direito mínimo e digno