Se nos tiverem dado um mínimo de educação, aprendemos desde miúdos que não devemos julgar ninguém pela sua aparência. Ensinam-nos que podem iludir. Mais tarde, quando já nos cruzámos com gente suficiente para tirarmos as nossas próprias conclusões, a malha da benevolência aperta-se um pouco. E a expressão passa a ser não julgar alguém apenas pela aparência. Ou seja, já aprendemos, à nossa custa, que muitas vezes o que aparenta é mesmo, ainda que mantenhamos o alerta moral para julgamentos precipitados.
Lembrei-me muito disto na véspera de Natal. Ao contrário de outros anos,
confesso que deixei as comprinhas para a última hora. Agi como o meu pai, que só gosta mesmo de fazer compras na confusão da véspera, diz ele que se sente melhor o espírito da quadra. E lá fui. Como se não bastasse, apesar de evitar normalmente as aglomerações modernas, enfiei-me no centro comercial, esperando que a variedade de oferta em espaço tão delimitado me fizesse perder pouco tempo. Com as almas de jornalista e ficcionista a trabalharem ao mesmo tempo, gosto de observar as pessoas. Tentar perceber o que fazem na vida, que estarão ali a fazer, se vão com ideias determinadas ou ao sabor das montras, se falam muito ao telefone, se parecem serenas ou enervadas, se aquele casal é recente ou já não se dá ao trabalho das mãos dadas, se aquele senhor de olhar vago, que caminha lento, arrasta a dor de uma perda recente, que tenta atenuar no zumbido da multidão. Por aí fora. Ou então quem serão (o que nos leva ao início) estes três jovens, que parecem transportar juntos mais sacos do que qualquer família. Como hesito e tenho de entrar várias vezes em várias lojas, dá para reparar melhor. Perceber que compram quase sempre alguma coisa em quase todas as lojas, e não se preocupam com as mais baratuchas. Aliás, os sacos não mentem. Tudo do melhor na roupa, no calçado, no desporto, na electrónica, nos gadgets. É também difícil não reparar em quem se quer fazer notar. Falam alto, riem á gargalhada, empurram-se em tiques de adolescente tardio e nervoso, trocam olhares e palavras cúmplices, num linguajar óbvio de código. À quarta ou quinta loja, calhou entrarmos todos.
Avançaram sem hesitar para um daqueles telemóveis a que só falta tirar cafés, espetaram com ele no balcão e pediram mais dois iguais. Calhou perceber que o modelo em causa era, talvez, o mais caro da loja cara. Levaram três, calculo que um para cada um. Na altura do pagamento, o empregado corou, mas não se fez rogado, que deve ter poucas
oportunidades destas: um deles tirou do bolso das calças de fato-de-treino uma bola de notas. Sim, uma bola, de consideráveis dimensões, de notas enroladas e pegajosas. Mais à frente, voltamos a coincidir. Mais à frente, a cena repete-se, loja de electrónica topo de gama. A empregada está a pensar o mesmo que eu, mas tem um trabalho para fazer. E se o cliente tem posses para levar o produto, não há muito para discutir. Faz por fingir que não repara no aspecto das notas, ainda ensaia perguntar se vão pagar com cartão ou cheque. Um deles esfrega-lhe na cara a pergunta: "não estás a ver o guito, tens algum problema com isso?" Claro que não tem nenhum problema, e muito menos lhe pagam para se pôr com interrogações, sejam de que espécie forem. Saem da loja, afundados em sacos, aos empurrões. Fico eu e a empregada, fazendo por não comentarmos o que nos parece óbvio. Entra uma senhora com o filho de dez anos. O rapaz passa a mão num teclado de computador com ar sonhador. A mãe sorri-lhe, mas indica-lhe que têm de seguir. O rapaz percebe, como deve ter percebido em muitas outras lojas. É que a mãe não anda para aí a roubar.